Rodrigo Pederneiras
Foto Ana Ottoni
Rodrigo Pederneiras em Belo Horizonte
À frente do Grupo Corpo, o coreógrafo inicia em abril uma turnê pelo Canadá com os espetáculos Parabelo e Breu
Era apenas o princípio, mas tudo já lhe soava melancólico como o cair da noite. Quando criança, Rodrigo simplesmente não gostava de existir. Lembra-se até hoje, com 55 anos, do pesar que o assaltava nas situações mais improváveis: aniversários, dias de sol e brisa, aventuras pelos parques. Um desamparo impertinente que não hesitava em lhe apontar o patético, o inútil de qualquer algazarra. Os moleques que o rodeavam sentiam-se donos do universo. Ele, um rei destronado _inseguro, retraído, temeroso, medíocre. Sofria com o presente e duvidava que o futuro lhe reservasse paisagens menos sombrias. Quase sem amigos, passava horas na sala de casa, solitário, escutando música erudita (apreciava especialmente Tchaikovsky). A alegria voraz da infância teimava em desprezá-lo. E por quê? Por nada de palpável. Nenhum dos chavões que povoam filmes e livros sobre garotos cabisbaixos o torturava: nem a pobreza, nem os maus tratos, nem o descaso dos parentes. Pelo contrário _nasceu em uma família de classe média, com pais afetuosos e um punhado de irmãos (cinco no total). Mesmo assim... Toda vez que avistava senhoras grávidas não conseguia esconder o dissabor. Julgava-as irresponsáveis por gerarem criaturinhas que, em breve, amargariam as sandices do mundo. Tinha raiva daqueles barrigões.
Uma tarde, à beira da adolescência, enquanto arrastava tristezas pelas ruas de Belo Horizonte, escutou alguém chamar: "Rodrigo, depressa!". Guilherminho, rapazote que morava perto dos Pederneiras, queria lhe mostrar "um negócio bem diferente". "Corre aqui!", reiterou, pegando o toca-discos portátil. Abriu a tampa de plástico e colocou um vinil para rodar. "Beatles, da Inglaterra", ensinou. À medida que o LP girava, semeando canções ensolaradas, Rodrigo percebia que uma sensação inteiramente nova, vigorosa, o inundava. Felicidade? Talvez.
Inspirado por John, Paul, George e Ringo, logo tratou de procurar outras bandas do gênero. As bandas o fizeram mergulhar no ideário da contracultura. O ideário da contracultura lhe despertou a atenção para a maconha. A maconha trouxe o riso fácil. E o riso fácil, ainda que entorpecido, fisgou namoradas. Quando se deu conta, Rodrigo saíra do buraco lúgubre em que sufocava desde pequeno.
Tornou-se um adulto razoavelmente otimista. Guarda, no entanto, alguns resquícios da introversão avassaladora que talhou o menino. Fala somente o necessário. Continua quase sem amigos. Odeia confraternizações que reúnam mais de seis pessoas. Prefere a rotina doméstica _em companhia da mulher (a bailarina Flávia Couret), do filho, do enteado e do neto_ às surpresas ocas do burburinho social. Rói unhas. Coleciona tiques nervosos. Sempre que pode, refugia-se em um sítio nos arredores de Ouro Preto, onde cultiva rede, lareira e cavalo. Veste-se com extrema austeridade, priorizando roupas cinzas, beges ou negras. Suspeita que o adjetivo "desinteressante" o espelhe à perfeição.
Não sabe exatamente por que se deixou arrebatar pela dança. Ou melhor: sabe, mas não busca traduzir o que sabe em palavras. Os movimentos que inventa explicam-se sozinhos. Cada um deles conserva os rastros dos inúmeros episódios que o antecederam e moldaram: do Rodrigo imberbe que tocava violão clássico e bateria, imaginando se transformar em músico profissional; do Rodrigo já maiorzinho que, certa noite, viu uma das irmãs saltitar num espetáculo de balé contemporâneo e perdeu o chão, ávido por também participar daquela epifania; do Rodrigo que, pouco depois de trocar os instrumentos musicais pelas sapatilhas, descobriu Buenos Aires e o talentosíssimo coreógrafo argentino Oscar Araiz, com quem teceu as primeiras montagens do Grupo Corpo.
Calvo e gordinho, tem apenas 1,60 metro de altura e uma lesão antiga no joelho direito, que ainda insiste em doer. Precisa se exercitar regularmente para fortalecer a musculatura da perna, emagrecer e, assim, diminuir o incômodo. Entretanto, foge de academias, personal trainers e fisioterapeutas. No máximo, sucumbe às caminhadas esporádicas, como um blasfemo que, de tempos em tempos, cantarola os salmos. Outra coisa: evita dançar fora do trabalho. Não peçam que saracoteie numa boate, por exemplo. Ficaria sem graça. Recorda-se de uma única ocasião, um forró, em que venceu a timidez. Estava completamente bêbado.
Beber, aliás, é o antídoto que usa contra o pavor de avião. Não, não pensa na iminência de um desastre. Na verdade, se arrepia com o absurdo de roçar as nuvens. Pior: de roçá-las dentro de um invólucro metálico que não poderá abandonar durante todo o trajeto. Por isso, só enfrenta viagens aéreas, mesmo as curtas, após tomar doses reforçadas de vinho ou uísque. O álcool não lhe dá coragem, mas lhe dá sono. E o sono põe o medo para dormir.
Envelhecimento? Morte? Não o assustam. Católico de formação, mantém a fé em Deus e acredita que a vida nunca termina. Depois da Terra, vamos para outro lugar, misterioso. Ou, então, reencarnamos. Considera as duas hipóteses viáveis e nenhuma o agrada. Se tivesse a chance de opinar, escolheria viver somente uma vez. Para que alongar o percurso? Nada lhe parece mais reconfortante que o ponto final.
Rodrigo Pederneiras em Belo Horizonte
À frente do Grupo Corpo, o coreógrafo inicia em abril uma turnê pelo Canadá com os espetáculos Parabelo e Breu
Era apenas o princípio, mas tudo já lhe soava melancólico como o cair da noite. Quando criança, Rodrigo simplesmente não gostava de existir. Lembra-se até hoje, com 55 anos, do pesar que o assaltava nas situações mais improváveis: aniversários, dias de sol e brisa, aventuras pelos parques. Um desamparo impertinente que não hesitava em lhe apontar o patético, o inútil de qualquer algazarra. Os moleques que o rodeavam sentiam-se donos do universo. Ele, um rei destronado _inseguro, retraído, temeroso, medíocre. Sofria com o presente e duvidava que o futuro lhe reservasse paisagens menos sombrias. Quase sem amigos, passava horas na sala de casa, solitário, escutando música erudita (apreciava especialmente Tchaikovsky). A alegria voraz da infância teimava em desprezá-lo. E por quê? Por nada de palpável. Nenhum dos chavões que povoam filmes e livros sobre garotos cabisbaixos o torturava: nem a pobreza, nem os maus tratos, nem o descaso dos parentes. Pelo contrário _nasceu em uma família de classe média, com pais afetuosos e um punhado de irmãos (cinco no total). Mesmo assim... Toda vez que avistava senhoras grávidas não conseguia esconder o dissabor. Julgava-as irresponsáveis por gerarem criaturinhas que, em breve, amargariam as sandices do mundo. Tinha raiva daqueles barrigões.
Uma tarde, à beira da adolescência, enquanto arrastava tristezas pelas ruas de Belo Horizonte, escutou alguém chamar: "Rodrigo, depressa!". Guilherminho, rapazote que morava perto dos Pederneiras, queria lhe mostrar "um negócio bem diferente". "Corre aqui!", reiterou, pegando o toca-discos portátil. Abriu a tampa de plástico e colocou um vinil para rodar. "Beatles, da Inglaterra", ensinou. À medida que o LP girava, semeando canções ensolaradas, Rodrigo percebia que uma sensação inteiramente nova, vigorosa, o inundava. Felicidade? Talvez.
Inspirado por John, Paul, George e Ringo, logo tratou de procurar outras bandas do gênero. As bandas o fizeram mergulhar no ideário da contracultura. O ideário da contracultura lhe despertou a atenção para a maconha. A maconha trouxe o riso fácil. E o riso fácil, ainda que entorpecido, fisgou namoradas. Quando se deu conta, Rodrigo saíra do buraco lúgubre em que sufocava desde pequeno.
Tornou-se um adulto razoavelmente otimista. Guarda, no entanto, alguns resquícios da introversão avassaladora que talhou o menino. Fala somente o necessário. Continua quase sem amigos. Odeia confraternizações que reúnam mais de seis pessoas. Prefere a rotina doméstica _em companhia da mulher (a bailarina Flávia Couret), do filho, do enteado e do neto_ às surpresas ocas do burburinho social. Rói unhas. Coleciona tiques nervosos. Sempre que pode, refugia-se em um sítio nos arredores de Ouro Preto, onde cultiva rede, lareira e cavalo. Veste-se com extrema austeridade, priorizando roupas cinzas, beges ou negras. Suspeita que o adjetivo "desinteressante" o espelhe à perfeição.
Não sabe exatamente por que se deixou arrebatar pela dança. Ou melhor: sabe, mas não busca traduzir o que sabe em palavras. Os movimentos que inventa explicam-se sozinhos. Cada um deles conserva os rastros dos inúmeros episódios que o antecederam e moldaram: do Rodrigo imberbe que tocava violão clássico e bateria, imaginando se transformar em músico profissional; do Rodrigo já maiorzinho que, certa noite, viu uma das irmãs saltitar num espetáculo de balé contemporâneo e perdeu o chão, ávido por também participar daquela epifania; do Rodrigo que, pouco depois de trocar os instrumentos musicais pelas sapatilhas, descobriu Buenos Aires e o talentosíssimo coreógrafo argentino Oscar Araiz, com quem teceu as primeiras montagens do Grupo Corpo.
Calvo e gordinho, tem apenas 1,60 metro de altura e uma lesão antiga no joelho direito, que ainda insiste em doer. Precisa se exercitar regularmente para fortalecer a musculatura da perna, emagrecer e, assim, diminuir o incômodo. Entretanto, foge de academias, personal trainers e fisioterapeutas. No máximo, sucumbe às caminhadas esporádicas, como um blasfemo que, de tempos em tempos, cantarola os salmos. Outra coisa: evita dançar fora do trabalho. Não peçam que saracoteie numa boate, por exemplo. Ficaria sem graça. Recorda-se de uma única ocasião, um forró, em que venceu a timidez. Estava completamente bêbado.
Beber, aliás, é o antídoto que usa contra o pavor de avião. Não, não pensa na iminência de um desastre. Na verdade, se arrepia com o absurdo de roçar as nuvens. Pior: de roçá-las dentro de um invólucro metálico que não poderá abandonar durante todo o trajeto. Por isso, só enfrenta viagens aéreas, mesmo as curtas, após tomar doses reforçadas de vinho ou uísque. O álcool não lhe dá coragem, mas lhe dá sono. E o sono põe o medo para dormir.
Envelhecimento? Morte? Não o assustam. Católico de formação, mantém a fé em Deus e acredita que a vida nunca termina. Depois da Terra, vamos para outro lugar, misterioso. Ou, então, reencarnamos. Considera as duas hipóteses viáveis e nenhuma o agrada. Se tivesse a chance de opinar, escolheria viver somente uma vez. Para que alongar o percurso? Nada lhe parece mais reconfortante que o ponto final.
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